Homenagem

O tradutor multi-Ablas: a arte de traduzir e de viver

Pegue o leitor uma "panela genética" e jogue sucessivas doses de santista, mineiro, cearense e alemão da Baviera. Misture bem. Levante a tampa da "panela" e veja o resultado:

José Luis de Freitas Guimarães Ablas, tradutor, pesquisador, genealogista, músico, voluntário e advogado formado no Largo de São Francisco. Sua personalidade era de uma vivacidade, inteligência e penetração de análise pouco comuns em nossos dias de pensamento débil e de almas pasteurizadas e ocas. Como lembrou um de seus melhores amigos, Ablas sobretudo não foi uma alma medíocre.

Além do português, sua língua materna, dominava o inglês, o espanhol, o italiano, o latim, e, como não podia deixar de ser, o alemão. Seu ouvido musical lhe permitiu aprender idiomas com uma facilidade surpreendente.

Poucas vezes pude contar com sua colaboração direta como tradutor. Numa ocasião, estava eu engasgado com um texto de história da arte em italiano. Pedi seu auxílio. Sabendo de seu escasso tempo, reuni as principais dúvidas, e ele foi descascando essas dúvidas na tela do computador.

Sussurrava as frases e palavras complicadas, conferia seus sons musicais, ia até as raízes etimológicas, estabelecia analogias, verificava os contextos e sugeria a tradução. Tiro e queda. No final, ele não deixava de ir ao dicionário para uma última verificação.

Na realidade, nunca pude tê-lo como tradutor estável em nosso Pronto-Socorro de Traduções. Ablas era um peixe grande demais para nossa pequena lagoa.

Em compensação, consegui participar em alguns jantares na Pizzaria São Pietro, no bairro Higienópolis, em São Paulo, onde o tradutor Ablas deliciava sua roda de amigos com comentários politicamente-incorretíssimos a respeito dos mais variados temas. Tinha ele uma tal vivacidade em seus comentários, que até aqueles que não gostavam de suas opiniões tentavam ficar perto, e chegavam a cutucá-lo, só para ouvi-lo descascar personagens e temas polêmicos, recorrendo frequentemente a doses variáveis de exagero didático.

Ele tinha uma listinha de temas preferidos.

Alguns de seus amigos, que gostavam muito dele, mas pouco de seus comentários, sucumbiam uma e outra vez à tentação. Conheciam essa listinha de temas polêmicos, e o provocavam. Era o "paradoxo Ablas": aguentavam a dor do arranhão que levavam ouvindo seus comentários, para não privar-se do agrado de ouvir as análises de sua língua afiada.

Seu trabalho voluntário, durante décadas, percorrendo países das Américas e da Europa, é um outro capítulo, sem dúvida, o mais nobre, e já está escrito no livro da vida.

Sua última grande realização profissional foi uma pesquisa no Quito colonial, nos Andes equatorianos, sobre a história do antigo Convento das Concepcionistas e de Nossa Senhora do Bom Sucesso.

Foi um projeto de envergadura: pesquisa, tradução e redação. O tradutor multi-Ablas topou a parada. Entrou no "túnel do tempo" e retrocedeu até o século XVI. Com poucos recursos, em poucas viagens e em poucos meses, o pesquisador-tradutor-garimpeiro redigiu um magnífico rascunho dessa misteriosa história, após vasculhar arquivos do antigo Quito, e de resgatar e traduzir documentos inéditos, quase soterrados nas antigas bibliotecas conventuais.

Recentemente, voltando de uma de suas viagens ao Quito, os cardiologistas lhe deram um ultimato: nunca mais cervejas e salsichas alemãs, nem pizzas, nem churrasco, nem sal, nem viagens aos Andes quitenhos. Ablas obedeceu aos médicos, aceitou o rígido tratamento e tomou as coisas a sério. Até sua língua afiada ficou um tanto intimidada.

Mas seu grande e expansivo coração teve um movimento interno de inconformidade. E não sobreviveu sequer um mês ao leonino tratamento.

No domingo 02 de dezembro, seus irmãos levaram ele às pressas à UTI da Santa Casa de Misericórdia. Esforçados médicos tentaram fazer um milagre, mas não conseguiram. O capelão chegou em tempo para dar-lhe a unção dos enfermos.

Diz o ditado que para Deus não existem heróis anônimos, e, acredito eu, tampouco existem tradutores anônimos. O tradutor multi-Ablas foi um exemplo da arte de traduzir, de pesquisar, de falar e de viver. Que em paz descanse e que desfrute seu primeiro Natal na eternidade.

São Paulo, domingo 16 de dezembro de 2012.

Gonzalo G. Acquistapace é tradutor e ghost-writer.

E-mail: tradutor24horas@uol.com.br